sexta-feira, 5 de agosto de 2016




É por Ti que Escrevo

É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na incoincidência do dia-a-dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar-te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso


© António Ramos Rosa

Arte © Ivan Kulikov

 

quinta-feira, 4 de agosto de 2016




O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar.
 
©  Carlos Drummond de Andrade

Arte © Maluda

 


Dorme, meu amor

Dorme, meu amor, que o mundo já viu morrer mais
este dia e eu estou aqui, de guarda aos pesadelos.
Fecha os olhos agora e sossega o pior já passou
há muito tempo; e o vento amaciou; e a minha mão
desvia os passos do medo. Dorme, meu amor -

a morte está deitada sob o lençol da terra onde nasceste
e pode levantar-se como um pássaro assim que
adormeceres. Mas nada temas: as suas asas de sombra
não hão-de derrubar-me eu já morri muitas vezes
e é ainda da vida que tenho mais medo. Fecha os olhos

agora e sossega a porta está trancada; e os fantasmas
da casa que o jardim devorou andam perdidos
nas brumas que lancei ao caminho. Por isso, dorme,

meu amor, larga a tristeza à porta do meu corpo e
nada temas: eu já ouvi o silêncio, já vi a escuridão, já
olhei a morte debruçada nos espelhos e estou aqui,
de guarda aos pesadelos a noite é um poema
que conheço de cor e vou cantar-to até adormeceres.

© Maria do Rosário Pedreira




POEMA LXXXIV

Quando falas do real,
queres realmente dizer o quê? Reais
são as tuas mãos e os meus versos, real é a sopa e a conversa,
real é o aborto e o sofrimento, a miséria e a loucura
mesmo antes de eclodir na tua cabeça.
Real é o que, não o sendo, é realidade para ti. Real
é o amor, o café da manhã, o pensamento vingativo
a caminho de uma realidade que há-de vir a ser.
Quando falas do real, falas apenas de um pedaço do real,
como se falasses da laranja inteira tomando a casca pelo todo.
Fala-me, então, do real.
Fala-me de como anoitece em ti. E das luzes que acendes
por dentro, para que possas, às claras, ajustar contas com o
sonho.
E fala-me da realidade que não conheces.
Diz-me se por todo o lado vês a mão de Deus,
a sua obra, o seu toque, o seu perfume. Diz-me se Deus é real
ou se é uma realidade imaginada. Deus é grande,
Deus está comigo, Deus está contigo, mesmo quando estamos
em disputa.
Que realidade é esta? Acreditas em ti? E Deus acredita nele?
Deus terá decerto uma ideia acerca de si mesmo
que não é exactamente a tua. Ou não é nenhuma? Ou
a realidade não existe? Ou ela é apenas a soma de todas
as realidades?
Um jogo virtual é uma realidade. Quando jogas,
fazes um jogo virtual na realidade, ou um jogo real virtualmente?
Como já disse,
a primeira realidade sobre o que oiço falar
é que nunca sei se estou a ouvir falar da realidade. Mas quero
ouvir-te.
Quero ouvir-te como
oiço o vento, o mar e o lagarto rastejando,
como oiço a chuva e o choro e a ambulância. O que
é real. O que é realmente real. Assumidamente real. Quero
ouvir-te, na realidade. Escutar os teus olhos,
o teu cérebro e a tua boca. Num discurso
que desafie os meus ombros, as minhas certezas, a minha
convicção
inabalável de que a realidade tem às vezes muito de real
quando se constrói com o sonho, a liberdade e a consciência
de que tudo é real quando já nada é real,
de que nós fazemos a realidade e de que a realidade nos faz,
e dela somos filhos, e pais, e a ela pertencemos
porque ela nos pertence tanto como tudo o que
realmente não existe e, por esse motivo,
é ainda mais real.
Quando falo do real,
quando falas do real,
quando falamos do real, queremos,
na realidade, dizer o quê?

 
© Joaquim Pessoa

Foto © Yuna Parmentier